Avaliação do potencial cancerigénico de microcistinas (cianotoxinas)


Autoria(s): Dias, Elsa
Contribuinte(s)

Batoréu, Maria Camila Canteiro

Jordan, Peter

Silva, Maria João

Data(s)

06/10/2016

06/10/2016

01/10/2009

Resumo

Tese de doutoramento em Farmácia (Toxicologia), apresentada à Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, 2009.

As microcistinas são metabolitos secundários produzidos por cianobactérias de água doce e constituem um risco para a saúde pública uma vez que a ingestão de água contaminada com microcistinas tem sido associada a episódios de hepatotoxicidade humana aguda e crónica. As cianobactérias são constituintes naturais do fitoplâncton de água doce e proliferam massivamente em condições ambientais favoráveis. Porém, a pressão antropogénica sobre os recursos hídricos tem contribuído para o aumento deste fenómeno a nível global, designadamente através da contaminação das massas de água com resíduos urbanos, industriais e agrícolas, cujo conteúdo enriquecido em azoto e fosfatos constitui um estímulo para o crescimento cianobacteriano. A proliferação intensa de cianobactérias (florescência) tem como consequência a acumulação de densidades elevadas de biomassa que, após a fase de senescência, liberta para a água níveis potencialmente nocivos de cianotoxinas. Uma proporção elevada das florescências é composta por cianobacterianas tóxicas e as cianotoxinas mais frequentes são as microcistinas. As microcistinas são um conjunto de aproximadamente 60 variantes estruturais partilhando a estrutura heptapeptídica cíclica comum ciclo(-D-alanina1-L-x2-D-eriro- -iso-aspartato3-L-z4-Adda5-D-glutamato6-N-metil-desidroalanina7) em que x e z são aminoácidos-L variáveis e Adda é o ácido (2S, 3S, 8S, 9S)-3-amino-9-metoxi-2,6,8-trimetil-10-decafenil-4,6-dienóico. A MCLR (com leucina e arginina nas posições variáveis) é a variante mais tóxica e mais comum. O órgão-alvo principal das microcistinas é o fígado uma vez que os hepatócitos expressam ao nível da membrana citoplasmática polipéptidos transportadores dos aniões orgânicos, através dos quais as microcistinas entram na célula. Assim, a maioria dos estudos toxicológicos com microcistinas tem sido conduzida no fígado in vivo e em células hepáticas in vitro. Com base em estudos de toxicidade aguda em animais, foi estabelecido em 1998 pela Organização Mundial de Saúde o valor-guia de 1 nM para a MCLR em água de consumo. Porém, este valor constitui uma medida preventiva parcial, uma vez que não contempla efeitos noutros órgãos nem efeitos crónicos, nomeadamente efeitos cancerigénicos. No entanto, estudos recentes têm demonstrado que a MCLR apresenta toxicidade noutros órgãos tais como os intestinos, os rins, o cérebro, pulmões e sistema reprodutor. Por outro lado, e embora a informação disponível sobre a toxicidade crónica não permita ainda a revisão daquele valor, a MCLR está actualmente classificada pela IARC (International Agency for Research on Cancer) como um composto potencialmente cancerigénico (classe 2B). Alguns estudos epidemiológicos associaram o aumento da incidência de hepatocarcinoma e cancro do cólon em populações humanas ao consumo de água contaminada regularmente com microcistinas. Por outro lado, estudos de carcinogenicidade em ratinhos revelaram que a MCLR é um promotor tumoral no fígado, pele e cólon. Recentemente tem sido descrita a actividade genotóxica da MCLR em diferentes tipos celulares. Contudo este é ainda um assunto alvo de alguma controvérsia na comunidade científica e não é ainda claro que a MCLR tenha, per si, capacidade de iniciação tumoral. Portanto, o conhecimento dos mecanismos subjacentes a uma eventual acção cancerigénica das microcistinas apresenta imensas lacunas. O objectivo do trabalho apresentado nesta tese foi a avaliação do potencial cancerigénico de microcistinas. Numa fase inicial seleccionou-se um modelo experimental in vitro (trabalho apresentado no capítulo 2). Para tal avaliou-se o efeito de extractos semi-purificados de duas estirpes de Microcystis aeruginosa, uma produtora de MCLR e outra não produtora de cianotoxinas, no crescimento e viabilidade de linhas celulares de hepatócitos humanos (HepG2) e de ratinho (AML12) e numa linha celular de rim de macaco (Vero-E6), através de testes de citotoxicidade (MTT e LDH). A escolha dos hepatócitos é óbvia, uma vez que o fígado é o órgão-alvo das microcistinas. Usaram-se hepatócitos humanos e de ratinho porque a sensibilidade à MCLR pode depender da espécie. Usou-se também uma linha celular de rim, com o intuito, à data do planeamento do trabalho, de incluir nos ensaios um modelo celular não hepático como controlo negativo. As estirpes de M. aeruginosa foram isoladas de florescências naturais colhidas na albufeira de Montargil e são actualmente mantidas na colecção de algas “Estela Sousa e Silva” do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA). A caracterização da produção de cianotoxinas pelas estirpes usadas neste trabalho foi elaborada previamente no âmbito de outros trabalhos de investigação decorridos no Departamento de Saúde Ambiental do INSA. A utilização da estirpe de M. aeruginosa não tóxica teve como finalidade assegurar que os efeitos observados se deviam à MCLR e não a qualquer efeito da matriz do extracto cianobacteriano. Contrariamente ao esperado, a linha celular de rim Vero-E6 apresentou uma sensibilidade similar ou até ligeiramente superior à dos hepatócitos (HepG2 e AML12). Por outro lado, o extracto da estirpe produtora de MCLR induziu um efeito genotóxico (aumento da frequência de micronucleos) nas células Vero-E6. Perante estes resultados inesperados e considerando o desconhecimento ainda existente acerca da toxicidade das microcistinas em células não hepáticas, seleccionou-se este modelo celular para a avaliação dos potenciais efeitos genotóxicos da MCLR. Para tal, a citotoxicidade da MCLR nas células Vero-E6 foi confirmada através da comparação dos efeitos de extractos de M. aeruginosa e MCLR pura (capítulo 3) e o limiar de citotoxicidade (25 μM) foi determinado, usando os testes MTT, LDH e Neutral Red. Os resultados deste trabalho demonstraram que a citotoxicidade da MCLR apresenta uma forte dependência do binómio dose/tempo de exposição e indiciaram que poderá manifestar-se primeiramente ao nível lisossomal e, sequencialmente, ao nível da mitocôndria e da membrana citoplasmática. Essa hipótese foi comprovada pelas metodologias de microscopia electrónica de transmissão e de imunofluorescência (capítulo 4). Estas metodologias permitiram identificar os alvos intracelulares da MCLR (retículo endoplasmático, lisosomas, citosqueleto, mitocôndria e membrana citoplasmática) e concluir que, de acordo com a dose e tempo de exposição, a MCLR desencadeia uma resposta autofágica nas células Vero, seguida da morte celular por apotose e necrose à medida que a dose e o tempo de exposição aumentam. Muitos destes resultados haviam sido já descritos para hepatócitos, mas apenas muito pontualmente para outros tipos celulares. Caracterizados os efeitos citotóxicos da MCLR, foram avaliados os efeitos genotóxicos nas células Vero e nas células HepG2 (capítulo 5) através do teste do Cometa e do ensaio dos micronúcleos (MN). O primeiro permite detectar quebras na cadeia de ADN, enquanto que o segundo avalia efeitos ao nível cromossómico, designadamente efeitos resultantes da quebra de cromossomas (clastogénese) ou da perda de cromossomas (aneugénese). Os resultados obtidos comprovaram que a MCLR (em doses subcitotóxicas, 5-20 μM) induz o aumento da frequência de micronúcleos em ambas as linhas celulares, mas não induz danos na molécula de ADN. A semelhança dos resultados obtidos com as células Vero e HepG2 sugerem que a MCLR actua através de um mecanismo genotóxico comum nas células hepáticas e renais, muito possivelmente através de um mecanismo aneugénico. A distinção entre actividade clastogénica e aneugénica poderá ser importante para a avaliação do risco, uma vez que para os agentes aneugénicos pode ser possível estabelecer um limiar de exposição abaixo do qual não decorrem riscos de efeitos genotóxicos, o que não é aplicável aos agentes clastogénicos. A identificação do tipo de micronúcleos pela técnica de FISH recorrendo a uma sonda pancentromérica permitirá esclarecer qual o mecanismo associado a este efeito genotóxico da MCLR. Com o intuito de avaliar o efeito da MCLR na proliferação da linha celular Vero-E6, utilizou-se o teste de incorporação de BrdU, que avalia a transição G1/S do ciclo celular (capítulo 6). Os resultados permitem concluir que a exposição a doses muito baixas (1-10 nM) de MCLR estimula a proliferação das células Vero-E6. Note-se que a dose de 1nM correspondente ao valor-guia da MCLR em água de consumo definido pela OMS e está contemplado na legislação portuguesa (Dec-Lei 306/ 2007, 27 Agosto) como valor paramétrico de referência. A análise por Western-blot da expressão de cinases proteicas activadas por mitogénicos (ERK1/2, JNK, p38) revelou que a MCLR estimula a proliferação da linha celular Vero-E6 através da activação da via de sinalização ERK1/2. Integrando os resultados apresentados nesta dissertação, poder-se-à concluir que a MCLR desencadeia uma multiplicidade de efeitos nas células Vero, sugerindo que estas poderão constituir um modelo celular adequado para o estudo dos efeitos nefrotóxicos das microcistinas. Embora o fígado seja o principal órgão de acumulação e eliminação da MCLR, cerca de 10% é excretada pela urina, pelo que os rins poderão também estar expostos a esta toxina. É de particular importância a avaliação dos efeitos decorrentes da exposição continuada a baixas doses, atendendo ao potencial cancerigénico da MCLR. Os resultados aqui apresentados acerca do efeito genotóxico e da capacidade da MCLR estimular a proliferação nas células Vero contribuem para o conhecimento dos efeitos e mecanismos subjacentes à eventual acção cancerigénica das microcistinas, sobretudo porque os estudos nesta área têm sido conduzidos maioritariamente em modelos hepáticos. Os resultados salientam, também, a necessidade de rever o valor-guia estabelecido para as microcistinas.

Microcystins are secondary metabolites produced by freshwater cyanobacteria that constitute a risk for human health because they have been associated with acute and chronic human hepatotoxicity after the ingestion of microcystin-contaminated water. Cyanobacteria are freshwater phytoplanktonic organisms that proliferate massively under favourable environmental conditions. However, the anthropogenic pressure on water resources has contributed to the increase of cyanobacterial proliferation worldwide, namely, through the water contamination with nitrogen- and phosphate- enriched urban, industrial and agriculture residues, that constitute a growth stimulus for cyanobacteria. The massive cyanobacterial proliferation (bloom) leads to the accumulation of high biomass densities in water that, after senescence phase, releases potential harmful levels of cianotoxins. Cyanobacterial blooms are often composed by toxic species and microcystins are the most frequent cianotoxins. Microcystins are a group of approximately 60 structural variants sharing the common cyclic heptapeptide struture cyclo (-D-alanine1 -L-x 2 -D-erythro- -iso-aspartic acid3 -L-z 4 -adda5 -D-Glu6 -N-methyl-dehydroalanine7 ), where x and z are variable Laminoacids and ADDA is (2S, 3S, 8S, 9S)-3-amino-9-methoxy-2,6,8-trimethyl-10- phenyldeca-4,6-dienoic acid. MCLR (with leucine and arginine in variable positions) is the most toxic and common variant. The main target organ for microcystins is the liver because hepatocytes express the membrane organic anion polypeptide transporters; through witch microcystins enters the cell. For this reason, toxicological studies have been conducted mainly in liver in vivo and in cultured hepatic cells. Based on animal acute toxicity studies, the World Health Organization has established, in 1998, the guideline of 1 nM for MCLR in drinking water. Nevertheless, this value constitutes only a partial preventive measure because it does not include the toxicity of MCLR on other organs, neither chronic effects, namely carcinogenic effects. However, recent studies have been demonstrated the MCLR induces toxicity on other organs such as the intestines, kidney, brain, lungs and reproductive system. On the other hand, despite the information on chronic toxicity of MCLR does not allow the revision of that value, MCLR is classified by the International Agency for Research on Cancer (IARC) as a potential human carcinogen (class 2B). Some epidemiologic studies have associated the increase of human hepatocarcinoma and colorectal cancers with the ingestion of frequently microcystin-contaminated water. On the other hand, rodent carcinogenicity studies have revealed that MCLR is a tumour promoter in liver, skin and colon. Recently, the genotoxic activity of MCLR has been described in several cell types. However, this is a matter of some controversy in scientific community and it is still not clear if MCLR can act as a tumour initiator. Thus, the mechanisms underlying an eventual carcinogenic activity of microcystins are still largely unknown. The aim of this thesis was the evaluation of the carcinogenic potential of microcystins. The first step was the selection of an in vitro cell model (presented in chapter 2). For that purpose, the effects of semi-purified extract from two Microcystis aeruginosa strains, a MCLR-producer and a non-toxigenic strain, on the growth and viability of human (HepG2) and mouse (AML12) hepatocytes and of a monkey kidneyderived cell line (Vero-E6), were evaluated by cytotoxicity assays (MTT and LDH).The use of hepatocytes is obvious given the fact of the liver be the target-organ of microcystins. Human and mouse hepatocytes were tested because the sensibility to MCLR may be specie-dependent. The kidney cell line was used, with the initial intent, to include a non-hepatic cell line as a negative control. M. aeruginosa strains were isolated from natural blooms collected in Montargil reservoir and belongs, presently, to the “Estela Sousa e Silva” algal collection from National Health Institute Dr. Ricardo Jorge (INSA). The characterization of cyanotoxin production by those strains was previously performed by other researchers at the Department of Environmental Health /INSA. The non-toxigenic M. aeruginosa strain was used to ensure that the observed toxic effects of MCLR-producer strain were due to MCLR and not to the cyanobacterial extract matrix. Conversely to what could be expected, the kidney Vero-E6 cell line showed a similar, or even higher, sensitivity to MCLR than the hepatocyte cell lines (HepG2 and AML12). In addition, the extract from the MCLR-producer strain induced a genotoxic effect (increase of micronuclei frequency) in Vero cells. Given these unexpected results, and considering the uncertainties regarding the toxicity of microcystins in non-hepatic cells, the Vero-E6 cell model was selected to further evaluate the potential genotoxic effects of MCLR. For that purpose, the cytotoxicity of MCLR was confirmed in this cell model, by comparing the effects of M. aeruginosa extracts and pure MCLR (chapter 3). The threshold of cytotoxicity was determined (25 µM) by the MTT, LDH and Neutral Red cell viability assays. The results from this work have demonstrated that the cytotoxicity of MCLR strongly depends on the dose/time of exposure and showed that it is exerted sequentially on lysossomes, mitochondria and cell membrane. This hypothesis was confirmed by transmission electron microscopy and immunofluorescence (chapter 4). These methods enabled to identify the intracellular targets of MCLR (endoplasmic reticulum, lysosomes, mitochondria and cell membrane) and to conclude that, accordingly to the dose and time of exposure, MCLR triggers an autophagic response in Vero cells, followed by apoptotic and necrotic cell death. Many of these results were previously described for hepatocytes, but rarely for other cell types. After the characterization of the cytotoxic effects of MCLR, the genotoxic effects were evaluated on Vero and HepG2 cell lines (chapter 5) by the comet and the micronucleous (MN) assays. The Comet assay detects DNA strand breaks and the MN assay evaluates the effects at chromosome level, namely, chromosome breaks (clastogenic effect) or chromosome loss (aneugenic effect). The results demonstrate that MCLR (at subcytotoxic doses, 5-20 µM) induces the increase in MN frequency on both cell lines, but it does not induce damages in DNA molecule. The similarity of results between Vero and HepG2 cells suggests that MCLR acts through a common genotoxic mechanism in liver and kidney cells, probably by an aneugenic mechanism. The distinction between clastogenic and aneugenic activity could be important for risk assessment, because for aneugenic compounds it may be possible to establish a threshold level, below which no hazard to human health is predicted, witch is not valid for clastogens. The identification of the MN by the fluorescence in situ hybridization (FISH) technique using a pancentromeric probe will enable to clarify the mechanism underlying this genotoxic effect of MCLR. To effect of MCLR on Vero-E6 cell line proliferation was determined by the BrdU incorporation assay that evaluates the G1/S transition in cell cycle (chapter 6). The results showed that the exposure to low doses of MCLR (1-10 nM) stimulates the proliferation of Vero-E6 cells. It should be noted that 1nM corresponds to the WHO guideline for MCLR in drinking water and is a mandatory level in Portuguese water legislation (Dec-Lei 306/ 2007, 27 Agosto). The Western-blot analysis of mitogen activated protein kinases (ERK1/2, JNK and p38) revealed that MCLR stimulates Vero cells proliferation by the activation of the ERK1/2 signalling pathway. Taken together, the results presented in this thesis shows that MCLR triggers a multiplicity of effects on Vero-E6 cell line, suggesting that this cells might be an appropriate cell model to study the nephrotoxic effects of MCLR. Although the main target organ for MCLR accumulation and elimination is the liver, approximately 10 % is excreted by the urine, witch means that the kidney might also be exposed. Given the potential cancerigenic effects of MCLR, it is of major importance to evaluate the effects of prolonged exposure to low doses. The results presented here regarding the genotoxic activity of MCLR and its ability to stimulate the proliferation of Vero cells contributes to the knowledge of the effects and mechanisms underlying the eventual cancerigenic activity of microcystins, primarily because the studies in this area have been conducted mainly in hepatic models. The results also emphasise the importance to re-evaluate the guideline of microcystins.

O trabalho conducente à presente dissertação foi apoiado financeiramente pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, no âmbito da bolsa de doutoramento com a referência SFRH/BD/10585/2002.

Identificador

http://hdl.handle.net/10400.18/4037

Idioma(s)

por

Relação

http://repositorio.ul.pt/handle/10451/276

Direitos

openAccess

http://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/

Palavras-Chave #Microcistinas #Cianobactérias #Genotoxicidade Ambiental #Citotoxicidade #Promoção Tumoral
Tipo

doctoralThesis