Estudo do efeito de contaminantes na espécie sentinela, a amêijoa Ruditapes decussatus, por intermédio da análise da expressão proteica: aplicação à monitorização do meio marinho


Autoria(s): Chora, Suze Chainho
Contribuinte(s)

Bebianno, Maria João da Anunciação Franco

Roméo, Michèle

Data(s)

07/09/2011

07/09/2011

2009

Resumo

Tese dout., Ciências e Tecnologias do Ambiente, 2009, Universidade do Algarve

As regiões costeiras, que englobam alguns dos ecossistemas mais produtivos do meio marinho e que são vitais à manutenção do equilíbrio da região litoral, são também lugares preferenciais para a instalação de várias estruturas humanas, tais como portos, centros urbanos, indústrias e actividades agrícolas. Como consequência, numerosos e variados poluentes são libertados nestas áreas, infligindo vários impactos negativos. Estes poluentes, que podem existir em solução ou em suspensão na água ou ainda associados a sedimentos, são classificados em poluentes: orgânicos, metais ou organo-metálicos. A presença destes contaminantes e, consequentemente, a sua persistência e biodisponibilidade, dependem de vários factores tais como as suas propriedades químicas e factores bióticos e abióticos. Tendo em conta este cenário, várias medidas foram aplicadas com o intuito de monitorizar a poluição do meio marinho que pode ter sérias repercussões não só ao nível dos organismos marinhos como também nas populações humanas que os consomem. Durante a década de 70, esta monitorização baseava-se na detecção de compostos químicos e na quantificação de moléculas potencialmente perigosas presentes na água, nos sedimentos e nos organismos marinhos. Contudo, tais análises não fornecem qualquer informação relativa ao efeito produzido pelos poluentes nos organismos marinhos. Por esta razão, passados trinta anos, surgiu uma nova abordagem no âmbito da ecotoxicologia, baseada em medidas bioquímicas, fisiológicas e comportamentais, denominada biomarcadores. Estes biomarcadores constituem um sistema de alarme precoce para situações de poluição podendo estar associados à exposição ou a efeitos tóxicos de um ou vários poluentes. Existem diferentes tipos de biomarcadores consoante a especificidade da sua resposta aos diferentes tipos de contaminantes. Todavia, estes biomarcadores, conhecidos por “biomarcadores clássicos”, não fornecem informações acerca dos processos celulares a que os organismos recorrem para reagirem e se adaptarem às situações de exposição a compostos nocivos. Adicionalmente para a maioria de poluentes faltam biomarcadores robustos, específicos e sensíveis. Com o intuito de ultrapassar estas lacunas, passados 10 anos surgiram novas técnicas, denominadas “ómicas”, que permitem um análise holística do efeito dos poluentes. Estas técnicas englobam: a genómica (o estudo da expressão génica), a transcriptómica (o estudo da expressão do ARNm), a metabolómica (o estudo dos metabolitos) e a proteómica (o estudo da expressão proteica). Contudo, estas técnicas inicialmente eram essencialmente aplicadas a espécies geneticamente bem caracterizadas, tais como microorganimos, roedores e o Homem. A análise proteómica, em particular, permite efectuar a análise quantitativa da expressão do proteoma definido como o complemento proteico total expresso por um genoma num dado momento em resposta a uma determinada condição. A proteómica tem sido aplicada com sucesso em biomedicina com o intuito de definir assinaturas de expressão proteica específicas de células ou tecidos associadas a doenças ou administração de fármacos, fornecendo novos biomarcadores de patologias humanas. Recentemente começou também a ser aplicada no âmbito da ecotoxicologia na avaliação da poluição ambiental, propondo novos biomarcadores de poluição. A análise proteómica permite estabelecer assinaturas de expressão proteica de células ou tecidos específicas de stresses particulares e a identificação de novos biomarcadores em organismos, estudados como modelos na área da ecotoxicologia. Contudo, são escassos os estudos onde esta abordagem é aplicada a bivalves, consideradas espécies bioindicadoras importantes devido à sua abundância, fácil colheita, dimensões aceitáveis, natureza séssil, repartição geográfica abrangente, considerável tolerância ao stress e capacidade para bioacumulação de poluentes. Estes organismos desenvolveram uma série de estratégias de acumulação, regulação e imobilização de poluentes sendo comummente utilizados em programas de monitorização de poluição marinha. O bivalve marinho Ruditapes decussatus (L.), também conhecida por amêijoa mediterrânica, preenche a maior parte dos requisitos anteriormente mencionados sendo considerada uma espécie bioindicadora, permitindo uma avaliação temporal e espacial da contaminação ambiental, tanto a curto como a longo prazo. Este bivalve está presente na Europa e países do mar Mediterrânico, sobretudo nas zonas estuarinas e lagunares. Em Portugal, particularmente no Sul do país (lagoa da Ria Formosa), a produção desta amêijoa é intensa, constituindo um importante recurso económico para a região, representando cerca de 80 % das amêijoas produzidas em Portugal. O cádmio (Cd) e o nonilfenol (NP) são dois poluentes presentes na Ria Formosa. O primeiro é um metal não essencial e a sua entrada nos ambientes marinhos advém de uma grande variedade de fontes antropogénicas (e.g. fertilizantes fosfatados, indústrias de exploração de metais; desgaste de pneus) e algumas naturais (e.g. erosão de rochas e actividade vulcânica). O NP, por seu turno, resulta da degradação dos etoxilatos de nonilfenol (NPE) que são amplamente utilizados entrando na composição de vários detergentes, lubrificantes, etc. Este composto é extremamente resistente à degradação e, consequentemente, bastante persistente nos ambientes marinhos. Ambos os contaminantes são bioacumulados por organismos marinhos, sendo extremamente tóxicos para os mesmos: são disruptores endócrinos e causam stress oxidativo. O stress oxidativo é originado nas células quando os sistemas de defesas antioxidantes (nomeadamente as enzimas antioxidantes tais como a superóxido dismutase, a catalase, a glutationa peroxidase, a glutationa, o ascorbato, etc) deixam de ter capacidade para neutralizar as denominadas “espécie reactivas de oxigénio”. Estes radicais livres de oxigénio têm origem em fontes endógenas ao organismo (e.g. enzimas da Phase I e ciclo redox) e exógenas (e.g. vários poluentes marinhos). Como são extremamente reactivos e não selectivos, estes radicais interagem com várias moléculas e, consequentemente, causam efeitos nocivos para os organismos, tais como: peroxidação lipídica, danos ao nível do ADN (e.g. modificações das bases, “strand-breaks”), apoptose celular e alterações e modificações das proteínas. Ao nível das proteínas os principais danos causados pelos radicais de oxigénio descritos são: a oxidação directa dos grupos hidroxilo, a formação de aldeído/cetonas (carbonilação), a oxidação dos resíduos S (e.g. cisteína), a racemização, a ubiquitinação e efeitos no padrão das ligações disulfido (e.g. glutationilação e modificações no grupo tiol). Estas modificações induzem alterações funcionais, nomeadamente ao nível do metabolismo celular sendo bastante nocivas para os organismos. A carbonilação é uma modificação pós-transducional e irreversível que se traduz na adição de grupos carbonilo C=O às proteínas. A ubiquitinação é igualmente uma modificação pós-transducional, que consiste na fixação covalente de uma ou mais ubiquitina (proteína) a uma ou várias lisinas. Esta modificação pode ser reversível e marca as proteínas para serem degradadas via o proteassoma, também conhecido pelo sistema ubiquitina-proteassoma. Recentemente, a análise da glutationilação, do conteúdo de tióis, e da carbonilação e ubiquitinação de proteínas têm sido aplicados com êxito como biomarcadores de stress oxidativo em algumas espécies bioindicadoras de bivalves. Neste contexto, o objectivo principal da presente tese foi analisar as modificações de expressão proteica induzidas na amêijoa R. decussatus devido à exposição a dois poluentes químicos, Cd (metal) e NP (um composto orgânico). Seleccionou-se a abordagem proteómica “bottom-up” com separação de proteínas efectuada por intermédio da electroforese bidimensional em condições desnaturantes (2DE SDS-PAGE). A 2DE SDS-PAGE é uma técnica correntemente utilizada na análise proteómica para a separação de proteínas, separando-as inicialmente em função do respectivo ponto isoeléctrico (focalização isoelétrica) e de seguida pelo peso molecular (electroforese propriamente dita). Contudo, os protocolos disponíveis para a separação 2DE SDS-PAGE, elaborados para aplicação em mamíferos, não se mostraram adequados aos tecidos dos bivalves, devido ao elevado teor em água do mar e de lípidos. Os sais interferem com o processo de electroforese enquanto que a associação de proteínas a lípidos reduz a solubilidade destas e altera o ponto isoelétrico e a massa molecular das mesmas. Face a isto, a primeira etapa desta tese incidiu sobre a optimização de um protocolo adequado a este tipo de organismos marinhos. O protocolo resultante permite obter géis reprodutíveis, mesmo quando gerados em diferentes laboratórios o que possibilita uma boa análise de imagem. Deve realçar-se ainda que este protocolo foi aplicado com sucesso a outras espécies de moluscos marinhos. De seguida procedeu-se ao ensaio de exposição durante o qual as amêijoas foram expostas 21 dias a concentrações sub-letais de Cd (40 μg.l-1) e de NP (100 μg.l-1). De salientar que os dados disponíveis, referentes a ensaios prévios de exposição similares ao anteriormente descrito, demonstraram ocorrer uma acumulação significativa de cádmio nas brânquias (órgão filtrador com uma grande área de contacto com o meio externo) e na glândula digestiva (principal órgão de armazenamento e desintoxicação) da espécie em estudo. O conteúdo de NP bioacumulado foi calculado por cromatografia gasosa (GC) acoplada a espectrometria de massa, equipada com quadrupolo simples. Esta técnica revelou a ocorrência de uma acumulação significativa de NP nos dois tecidos estudados comparativamente ao controlo (43.52 ± 0.53 μg.g-1 ps nas brânquias e 55.29 ± 0.60 μg.g-1 ps na glândula digestiva). Os perfis de expressão proteica (PEPs) obtidos em géis com 10% de poliacrilamida das brânquias e da glândula digestivas das amêijoas expostas foram comparados com os dos animais controlo e analisados por intermédio do software PDQuest (V8.0, Bio-Rad). Esta análise revelou que a exposição ao Cd e ao NP induziu profundas modificações nos proteomas de ambos os tecidos, nomeadamente uma expressiva redução do número total de proteínas. Estas diferenças dependem do tipo de tecido e são consequência das funções desempenhadas por cada um deles na acumulação dos dois poluentes. A exposição ao Cd induziu um maior número de novas proteínas, nomeadamente ao nível da glândula digestiva, o que pode ser justificado pelo facto deste órgão constituir o principal local de armazenamento de Cd nas amêijoas. Este estudo permitiu definir assinaturas de expressão proteica (PESs) específicas da exposição aos dois poluentes e da exposição a cada um dos poluentes em separado. Nestas PESs foi visível a tendência para a sobre-expressão de proteínas após exposição aos poluentes. Adicionalmente, procedeu-se à identificação de algumas das proteínas cuja expressão foi drasticamente alterada através de sequenciação por LC-MS/MS (cromatrografia liquida acoplada a massas). Esta identificação foi dificultada por existirem poucas sequências de proteínas de moluscos presentes nas bases de dados utilizados para a identificação. Contudo, permitiu verificar que a exposição a Cd e NP alteram a expressão de proteínas envolvidas: na estrutura do citoesqueleto, na manutenção das células e resposta ao stress, transporte celular e transdução de sinal. O maior número de identificações de proteínas relacionadas com o citoesqueleto justifica-se pela sua maior abundância e prevalência nas bases de dados. No entanto, deve realçar-se a identificação de 4 proteínas que não estão no grupo de péptidos vulgarmente e repetidamente identificados neste tipo de estudos: a aldeído desidrogenase (ALDH), a acil-CoA desidrogenase da cadeia média (MCAD), a serum albumina precursor e a proteína “histona-binding” (RBBP7). Deve salientar-se ainda que a identificação das proteínas ALDH, MCAD e RBBP7 foi confirmada por sequenciação de novo. As proteínas “RabGDP inhibitor dissociation“ e “histona-binding” (RBBP7) são sugeridas como possíveis novos biomarcadores de exposição ao Cd e ao NP, sendo sobre-expressadas após exposição ao Cd e inibidas pelo NP. Os péptidos «calreticulin precursor» (CRP55) e serum albumina precursor por seu lado são propostas para eventuais biomarcadores de exposição ao NP, sendo sub-expressas por este. Adicionalmente, a subunidade beta da ATP sintase e a acil-CoA desidrogenase da cadeia média (MCAD) são indicados como potenciais novos biomarcadores para exposição ao Cd: a primeira é sub-expressa enquanto que a segunda é sobre-expressa. Contudo é necessária a sua validação para poderem ser utilizados como biomarcadores de exposição a Cd e NP nesta espécie. Procedeu-se também ao estudo do stress oxidativo causado pelos mesmos poluentes recorrendo à aplicação da técnica denominada “proteómica redox” para analisar as proteínas carboniladas e ubiquitinadas nas brânquias e glândula digestiva de R. decussatus após a exposição a Cd e NP. Neste estudo recorreu-se à utilização de amêijoas provenientes do ensaio de exposição anteriormente descrito e à separação de proteínas por 2DE SDS-PAGE seguida de imunodetecção por western-blotting em presença de anti-corpos específicos. Os padrões das proteínas carboniladas e ubiquitinadas foram analisados recorrendo ao software de análise de imagem PDQuest (V 8.0, Bio-Rad). Em ambos os tecidos a exposição ao Cd e NP originou diferentes perfis para a carbonilação e ubiquitinação de proteínas. As diferenças detectadas foram específicas de cada um dos tecidos e de cada um dos poluentes. Estes resultados revelam que estas duas modificações são processos independentes entre si e específicos do Cd e do NP possuindo grande potencial para constituírem bons marcadores de stress oxidativo nesta espécie. Os resultados obtidos na presente tese permitiram definir assinaturas de expressão proteica e identificar algumas proteínas envolvidas na resposta da espécie bioindicadora R. decussatus à exposição ao Cd e NP que poderão constituir novos biomarcadores. No seu conjunto, os dados apresentados validam o potencial da análise proteómica no âmbito da ecotoxicologia, constituindo uma ferramenta que poderá ser utilizada no futuro na avaliação de risco da contaminação química do ambiente marinho.

Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)

Formato

application/pdf

Identificador

http://hdl.handle.net/10400.1/864

101188897

Idioma(s)

eng

Relação

SFRH/BD/19477/2004

Direitos

openAccess

Palavras-Chave #Teses #Ambiente #Ruditapes decussatus #Amêijoa #Poluição marinha #Biomarcadores
Tipo

doctoralThesis